Harris Glenn Milstead teve o que se poderia chamar de infância normal e tradicional de uma família
norte-americana de classe média conservadora dos anos 40/50. Antes de vir ao mundo, em 19/10/
1945, na cidade de Baltimore (EUA), seus pais haviam tentando sem sucesso conceber um herdeiro
para o nome da família e, provavelmente, o trauma causado por essas experiências tenha feito com
que tratassem o único filho como seu maior tesouro, não lhe negando nada, fosse material ou em
termos alimentares, o que faria Glenn eternamente lutar contra uma compulsão por um estilo de
vida que, muitas vezes, não tinha como manter, assim como uma luta até o fim de seus dias contra a
balança.
Essa química mostrou-se fatal quando Glenn iniciou sua vida acadêmica. Ainda mais em uma
sociedade extremamente competitiva como a americana, pródiga em colocar em seu devido lugar os
que não se encaixam nos modelos desejados e esperados, que dizer então na época em questão. Aos
trancos e barrancos, Glenn conseguiu se formar e, logo em seguida, fez um curso profissionalizante
para cabeleireiro, arranjando emprego em salões locais onde adquiriu certo renome pois sabia
montar os famosos penteados beehive como poucos.
O dinheiro que ganhava era torrado com roupas caras e festas e, em certo momento, ele
simplesmente largou mão de seus empregos, jogando para seus pais a árdua tarefa de pagar as
altissimas contas que não paravam de chegar. Já nessa época, Glenn costumava promover festas
onde se vestia como as estrelas de cinema, em especial Liz Taylor, de quem era fã ardoroso. As
contas dessas festas, assim como das roupas que ele usava para personificar suas atrizes favoritas, eram, obviamente, pagas por seus pais. Pode-se dizer que era uma questão de tempo (ou que
ele estava predestinado) para que Glenn esbarrasse na cultura underground de Baltimore, que
fervilhava, e ficasse amigo de figuras tão oucast quanto ele, como David Lochary, Carol Wernig
e, por fim, John Waters, que sonhava tornar-se diretor dos piores filmes já realizados na história do
cinema.
Estava lançada a sorte que mudaria a vida de todos e que poria no mundo uma das personas mais
marcantes que já existiram: Divine (o nome foi extraído de Nossa Senhora das Flores, de Jean
Genet, que Waters devorava à época). Agregaram-se ao grupo, Mink Stole e Marian Vivian Pierce, formando o que ficou conhecido como Dreamlanders e capitaneado por Waters, rodaram uma
série de filmes caseiros, até que soltaram o primeiro curta onde Divine aparece, Roman Candles (1966), inspirado pelos filmes de Andy Warhol.
Glenn matinha sua atuação nesses filmes em segredo, temeroso de que sua família não aceitasse
ou entendesse sua participação em obras de gosto tão duvidoso. Seguiram-se mais curtas: Eat Your Make Up (1968), The Dianne Linkletter Story/Mondo Trasho (1969) e Multiple Maniacs (1970), filme que chamou a atenção da mídia para Waters e Divine, permitindo que filmassem o que
se pode considerar como a trilogia clássica de Waters/Divine: Pink Flamingos (1972), Female
Trouble (1974) e Polyester (1981), todos com Divine.
Em meio a esses três filmes, Divine iniciou também uma razoavelmente bem sucedida carreira na
música. Gravando basicamente Hi-NRG e dance, seus shows eram antológicos e mesclavam não
apenas música, mas performances no melhor estilo cabaret. Já nessa época, Glenn começou a sentir
o peso de administrar ser Divine e chegou mesmo a tentar se desvincular um pouco de sua criatura, atuando em outros filmes não dirigidos por Waters, ainda que nesses filmes também personificasse
mulheres e, nos créditos, fosse Divine e não Glenn quem aparecia. A única aparição de Glenn como
homem foi em Out of the Dark (1989), uma comédia erótica de horror de terceira, sendo que o filme
foi lançado após sua morte.
Porém, a consagração viria em 1988 com Hairspray, a comédia sobre segregação racial de Waters, com Divine em seu primeiro papel realmente 'sério'. Infelizmente, Glenn faleceu três semanas após
a estreia do filme nos cinemas, não aproveitando da fama que o filme lhe traria. Reza a lenda, que
Glenn estava muito satisfeito com sua atuação no filme e que era um consenso entre seus amigos
que após esse ele poderia fazer o que quisesse, as portas da fama estariam totalmente abertas. Não
para Glenn, mas definitivamente e para sempre, a Divine.
O legado Divine é imenso, corpulento como ela e, possivelmente, se ainda vivesse estaria
fazendo algo para chocar a sociedade, ainda mais em tempos de pregações de ódio travestidas de
religiosidade às minorias. Divine é a síntese do excluído e os filmes de Waters expressam bem
esse sentimento, numa crítica ácida aos costumes e moral que a sociedade insiste em nos empurrar
goela abaixo. Não é para qualquer um, fato; o estilo de Waters e seus personagens podem causar
desconforto aos mais fracos de estômago ou que demandam uma intelectualidade emprestada de
conceitos clássicos e meio vagos.
Talvez, por isso mesmo, Divine/Waters sejam considerados cult ou mesmo malditos. Eu mesmo
tenho amigos que não entendem como posso amar os dois e assistir a seus filmes quantas vezes for
possível. Acho que a mágica se estabelece quando você se sabe um excluído, diferente dos demais,
não comungando dos mesmos gostos ou ideias. Esse sentimento de não pertencer ao lugar e de que
você enxerga as coisas de outra maneira e, porque não dizer, de que você tem muito a dizer.
Divine é isso, é essa expressão incontrolável de ser e existir, de nadar contra a corrente e mostrar
que o mundo precisa sim de uma boa chacoalhada de tempos em tempos não para colocar tudo
abaixo ou no seu lugar. Divine não gostava disso, e fez seu papel apenas para colocar as coisas sob uma outra
perspectiva.
2 comentários:
Mas que delícia saber tanto sobre esta pessoa tão estupenda que foi a Divine. Que pena que ela nos deixou cedo, mas saiu desta vida para se tornar imortal e como dizia o o outro: "o bons morrem jovens."
Parabéns, Alexandre e seja bem vindo ao Pop de Botequim
Beijão
Obrigado a você, amigo e ao pessoal do PDB que me abriu as portas!
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